2007/04/04

O medo da sarjeta

Nos idos tempos de Pedro Santana Lopes no Governo, a nação acordou alvoraçada com a possibilidade de o Governo criar uma central de comunicação. Coisa diabólica, censura política, lápis azul e coisas que tais, pressurosamente encontradas para adjectivar uma reorganização na forma de contacto do Governo com a comunicação social. E o Governo lá foi apascentado pelos cultores do politicamente correcto, eles sim detentores de lápis azuis, e a central de comunicação acabou por ficar pelo papel.
Ninguém espera, claro, que os cultores do lápis azul, os que verdadeiramente determinam quando é que a nação deve indignar-se, se esqueçam das suas simpatias políticas. Os censores servem para isso mesmo. O que já se esperava é que, 30 anos depois de Abril, os censores do regime disfarçassem melhor, e com maior pudor, ao serviço de quem pululam, permitindo que um véu, pelo menos ténue, lhes cobrisse as intenções.

Dois exemplos recentes demonstram o estado da coisa e desmascaram o Estado metido nela: as profusas declarações de Augusto Santos Silva, censor máximo do jornalismo de sarjeta e o tratamento jornalístico dado às constantes mutações na biografia oficial de José Sócrates.
Que um ministro se arrogue o direito de classificar, com força de lei ou regulamento, com eficácia geral, o que deve ser um (proibido) jornalismo de sarjeta, deveria provocar reacções proporcionais à enorme violação da liberdade de expressão, nas suas várias vertentes, que ali se espreita. Mas parece que não. Tudo calado, com raras – mas tardias, demonstrando que a blogosfera serve afinal para muito – excepções.
O que é o jornalismo de sarjeta? É o jornalismo de que não gosta Augusto Santos Silva. Como sair dessa sarjeta? Agradando a Augusto Santos Silva. Claro como água, azul como o lápis.
Claro que, se a mão que empunhasse o lápis não fosse canhota, ai Jesus que vem aí o Salazar e querem acabar com a liberdade. Mas como a mão que o empunha é a mesma que cerra os punhos, tudo se passa como se nada se passasse, e viva a regulação e viva a qualidade e mais não sei o quê. Já ninguém se lembra da central de comunicação de Santana, claro, nem do cuspo com que a recebeu, tão ocupados que estão no beija-mão oficial às canhotas mãos.
Tudo não passaria de uns maravilhosos parágrafos para enxertar no livro de Santana Lopes não fosse, final, verdade tudo quanto venho escrevendo neste post. Pois que foi em nome do jornalismo de sarjeta que a quase universalidade dos nossos meios de comunicação social se escusou a publicar e investigar um assunto de evidente interesse público.
Não falo de uma falta de licenciatura, não, sem esquecer que a falta da dita serve sempre para atacar e denegrir quem está na política: são os carreiristas e senhores do aparelho. Mas não. Nem disso falo, que nunca fui nessas cantigas. Falo da possibilidade de mentiras, as tais que matam os políticos, sobretudo à direita claro está e da eventualidade de favorecimentos, dos tais que matam os políticos, sobretudo à direita claro está.
Receosos de serem remetidos à sarjeta, quase tudo se calou. E os poucos que falaram, que ousaram colocar o pezinho em rama verde, fizeram-no com um respeitinho tal que nos vieram à memória primeiras páginas sem respeitinho nenhum. Munidos de paninhos quentes, que faltam quase sempre, infelizmente, os corajosos fizeram o que puderam para noticiar sem irritar, publicar sem denegrir, dizer sem contraditar.
E os telefonemas, centralizados ou não, lá se fizeram, claro, com os seus efeitos. Tudo muito normal, evidentemente, que o número foi digitado por mão canhota e é em nome da qualidade e do rigor da profissão e não, como esses diabos do Governo do Santana, que vinham acabar com a liberdade de abrir o bico.

Via O Insurgente

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